Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum.
E de repente me sentia protegida, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido...
Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa.
Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos...
(...)
Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração.
Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector "Tentação" na cabeça estonteada de encanto: "Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível"
Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu o olhava.
(...)
A vida seguirá no seu tempo, na distância, na poeira soprando.
Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, quando cansada tenho vontade de deleitar em seus braços.
Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor.
Curvo a cabeça, agradecida.
E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir medo.
C.F.A.
[Faz de conta que ela não estava chorando por dentro.
Pois agora mansamente, embora de olhos secos, o coração estava molhado.
...É só esta vontade quase simples de estender os braços para tocar você.]
*