“Aquela antiga boa sensação de... estar onde ninguém pode alcançá-lo...”
.
Morar sozinho é observar a fruteira vazia. É enganar a si mesmo na hora de acordar (só mais 15 minutos, só mais meia hora, só mais uma horinha). É dormir e acreditar que tem mais gente em casa. É receber uma ligação da síndica,por que mais uma vez esqueceu de pôr o carro pra dentro. Morar sozinho é duro. Estranha arte, a de morar sozinho. Arte dos adiamentos eternos e das conversas com a geladeira (as vezes também vazia).
É, no meio do dia, sentir vontade de telefonar para si mesmo. Morar sozinho é foda, mas é legal.
Morar sozinho é esquecer uma panela de Miojo no fogão. É saber o endereço dos fantasmas.Abrir uma lata de atum às duas e meia da madrugada.
Assim é morar sozinho: acordar, lavar o rosto, escovar os dentes, tomar dois telynois, sair para o mundo,estar sozinho no mundo e esperar encontrar a primeira pessoa que vc irá ver e dar Bom dia.
Quando em casa, fingir que não tem ninguém. A campainha quebrada há mais de nove meses. O sono diante da TV ligada, um copo d´água pela metade, um cordão de sapato feito cobra no tapete. Uma cama em desalinho. A TV ligada (e o filme continua dentro da cabeça).
Morar sozinho é ler o jornal, de manhã, com profunda desatenção. É voltar no meio da noite e não encontrar ninguém em casa. É pedir uma pizza inexistente e uma Coca “normal” de 600.É saber decorado os telefones dos deliverys.
Morar sozinho é sentir falta do amigo imaginário da infância (que hoje deve estar casado e com três filhos, futebol aos sábados, restaurante aos domingos). É viver, todo dia, as últimas cenas de 2009.É deixar a casa dos pais onde vc tinha tudo nas mãos,para aprender a ser uma criança com contas de gente grande à pagar.E ainda assim, correr pros braços deles quando algo os aflinge e ser recebida com braços abertos,colos acolhedores e sorrisos largos.
Morar sozinho é perder o sono por coisas idiotas.É ter medo quando falta luz e superar sozinha o medo de trovões.É ver a semana passar e esperar a Sexta Sem-Lei do Amicis.Uma solidão cercada de Paz por todos os lados. É esperar o fim de semana, o vento leve e o silêncio respeitoso das manhãs de domingo.
É atender a um telefone do pai às 7 e meia da matina.
Morar sozinho é dar nome aos objetos, nome e sobrenome.
É ter problemas com as crianças que insistem em fazer barulho na janela. É ter uma coleção de miniaturas e uma infinidade de livros não-lidos.
É tomar banho ouvindo Bach. Morar sozinho é exercitar a loucura de nascer todos os dias no tempo. É caminhar entre os meses como quem chuta pedras no chão. É legal, mas é foda.
E a campainha – a campainha continua quebrada.
.
[Não é nada não mãezinha.
É que as vezes me dá uma saudade de tudo...da senhora...do papai
e do tempo em que viver era apenas um dia após o outro.]
*